quinta-feira, 14 de junho de 2018

O ritornelo na arte de Lygia Clark

Um singular estado de arte

SUELY ROLNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994 (1). Deitada no chão, olhos vendados, alvoroço de corpos anônimos agitando-se em torno de mim, não sei o que pode vir a acontecer. Perda total de referências, apreensão, desassossego. Estou entregue. Pedaços de corpos sem imagem destacam-se, ganham autonomia e começam a agir sobre mim: bocas anônimas abrigam carretéis de máquina de costura, cujas linhas lambuzadas de saliva, são ruidosamente desenroladas por mãos igualmente anônimas, para depositá-las logo em seguida sobre meu corpo.

Coberta pouco a pouco dos pés à cabeça por um emaranhado de linhas, composição improvisada de bocas e mãos que me cercam, vou perdendo medo de diluir a imagem de meu corpo, me diluir: começo a ser este emaranhado-baba. O som dos carretéis girando nas bocas parou. As mãos agora se embrenham nesta espécie de molde úmido e quente que me envolve para retirá-lo até que nada mais reste. Meus olhos são desvendados. Volto para o mundo visível. No fluxo do emaranhado-baba, plasmou-se um novo corpo, um novo rosto, um novo eu.

Estou atordoada. O que é isto que me aconteceu?

Procuro pistas nos textos da própria Lygia, que sempre me soaram como os mais precisos para dizer o indizível de sua obra. Detenho-me especialmente no período em que Lygia cria a "obra" que me aconteceu, à qual deu o nome Baba Antropofágica (1973), que se inicia logo após seus famosos Bichos (1964): os últimos 24 anos de sua produção, quando torna-se (deliberadamente) inviável expor seus objetos em museus, galerias, salas ou salões. Que sentido teria expor carretéis, por exemplo, sem esta experiência que descrevi?


Chama minha atenção a repetição insistente de algumas palavras e expressões, verdadeiros ritornelos. Decido então tomá-los como linhas de minha investigação: começo pela "memória do corpo". De que corpo e de que memória Lygia estaria falando?

Apelo para a memória das sensações que vivi na Baba Antropofágica. Descubro que o corpo do qual fala Lygia não é nem o corpo orgânico, nem a imagem do corpo: estes, ao contrário, são os corpos que foram se desmanchando em mim na mistura das babas. O corpo vivido nesta experiência está para além deles, embora paradoxalmente os inclua: é o corpo do emaranhado-fluxos/baba onde me desfiz e me refiz.

Penso no "corpo sem órgãos" expressão de Artaud, retomada e expandida por Deleuze e Guattari, no mesmo momento em que Lygia fazia sua Baba Antropofágica. O corpo sem órgãos é esta matéria aformal de fluxos/babas, que experimentei num plano totalmente distinto daquele onde se delineia minha forma, tanto objetiva quanto subjetiva.

Um além da forma, habitado por uma fervilhante agitação de fluxos de saliva, de linhas, de bocas, de mãos, em movimentos de atração e repulsa, produzindo constelações –pletora de vida onde foi germinando um feixe desconhecido de sensações, impossível de ser expresso na forma em que eu me reconhecia; algo em mim deixara de fazer sentido. Só fui me apaziguar quando senti ganhando consistência um novo corpo, um novo eu, encarnação daquelas sensações.

Vislumbro então que o corpo sem órgãos dos fluxos/baba é um fora de mim, mas que curiosamente me habita, e ainda por cima me faz diferir de mim mesma. Se não é dentro de mim, onde é que este fora me habita?

Lembro-me de um comentário de Lygia sobre uma obra do período que estou investigando: "O homem quando põe essas máscaras, vira um bicho autêntico, pois a máscara é um apêndice dele." Encontro uma pista: o fora é o corpo sem órgãos do autêntico bicho, matéria feita de babas, misturando-se ao infinito, produzindo dobras e mais dobras, cujos contornos circunscrevem dentros. E os dentros vão sendo aglutinados no emaranhado das babas, bicho antropofágico que os devora tornando-os contingentes e finitos.

E a memória deste corpo? Em que espécie de memória a Baba me lançou?

É Lygia quem responde: na memória do "arcaico", mais um de seus ritornelos. Memória do bicho –do não-humano e seus afetos que nos habita– paradoxalmente sempre contemporâneo. Memória do corpo dos emaranhados-baba, campo de experimentação de uma cronogênese: engendramento de linhas de tempo, que se espacializam em novos mundos. Memória prospectiva, acessada por reativação (do bicho) e não por regressão (ao passado humano e seus conteúdos reprimidos).
Mas porque Lygia inventa objetos para acessar esta memória do corpo? O que pretende com isso?
Se a memória a ser acessada é a cronogenética, a função dos objetos que Lygia cria não é a de uma sensibilização ou liberação catártica seja do corpo próprio como fonte de prazer, seja da imagem do corpo como fonte de unidade psíquica ou dos tais conteúdos reprimidos que se encontrariam num arquivo secreto.

Ao contrário, a função destes objetos é promover a abertura na subjetividade para um além do humano: o autêntico bicho (o vivo).

É a própria Lygia quem afirma que o ritual que convoca esta memória não visa "buscar uma forma a ser encontrada seja no passado, seja no futuro, mas a vivência experimental do particípio presente da evolução incessante das formas. Ritual que servirá de ponte para atravessar da terra pseudo-firme de sua alienação para as águas instáveis e inesgotáveis de sua liberdade de ação e do "precário como novo conceito de existência".

O que Lygia quer é criar condições para conquistar na subjetividade um certo estado no qual é possível suportar a contingência das formas, desgrudar de um dentro absolutizado vivido como identidade, navegar nas águas instáveis do corpo aformal e adquirir a liberdade de fazer outras dobras toda vez que um novo feixe de sensações no bicho assim o exigir.

Lygia chamou isto de "atingir o singular estado de arte sem arte", ritornelo que define a experiência que me interessa problematizar aqui. Porque sem arte? É que para Lygia experimentar o estado de arte –corporificar um novo feixe de sensações, singular por definição– não se dá somente na criação de um objeto de arte, mas também na criação da existência objetiva e/ou subjetiva. A questão de Lygia é esta: promover o estado de arte na subjetividade do espectador, sacudir sua posição, desreificá-la radicalmente. Mais do que a simples participação, redutível a um democratismo politicamente correto.

Aqui encontra-se a originalidade e a força maior da obra de Lygia. É isto que a fez deslocar-se paulatinamente do público de museus e galerias, por demais reificado em sua identidade de espectador, para ir buscar seus "espectadores" entre jovens estudantes da Sorbonne pós-68, depois entre transeuntes anônimos nas ruas de Paris e, no final, um a um, de preferência borderlines, no contexto daquilo que ela própria chamou de "consultório experimental". O acesso do espectador aos objetos passa a depender de sua entrega a uma iniciação: a abertura de sua subjetividade para o estado de arte.

O que Lygia visa não é que cada um possa exercer sua "criatividade" com os objetos, usá-los ludicamente como num playground; menos ainda que cada um possa tornar-se artista. O que Lygia quer é que se possa fazer da existência uma obra de arte.

É verdade que como proposta estética isto não tem nada de novo; poderia-se dizer que ela acompanha a arte moderna desde o início. Mas Lygia vai mais longe: ela quer a desreificação da existência individual e coletiva, a descoagulação das formas, a conquista de uma fluidez nos processos de subjetivação: um plasmar-se, como ela diz –deixar-se descosturar e costurar pelo fervilhar do trabalho subterrâneo das forças e fluxos de nosso bicho, germinação que se opera em silêncio e que pede um corpo –de pensamento, de arte, de existência, etc.– que venha encarná-la.

Lygia nos propõe um modo antropofágico de subjetivação: o bicho devorando o homem, outro homem nascendo desta devoração e assim ao infinito.

É também verdade que tampouco é nova a proposta de rasgar as figuras para deixar entrever as forças em ação, esta se formula junto com a modernidade na arte. A singularidade de Lygia é atingi-lo no próprio corpo do espectador: colocá-lo on-line com as forças, rente à vida; lançá-lo no devir.
Para chegar a isso Lygia teve que ir apurando o objeto até um quase-nada. Isto poderia ser entendido como um "não-objeto". Foi assim que Ferreira Gullar pensou os Bichos, mas Lygia discordou totalmente. Há um "quase" que resta, e este quase é o que de essencial no objeto mobiliza o que descrevi através da Baba –aquilo que opera, no corpo, a experiência da desestabilização da subjetividade do espectador, permitindo-lhe viver a forma no momento de seu naufrágio, momento que é também o de uma germinação.

Lygia quis e conseguiu reduzir a mediação do objeto ao mínimo necessário, o quase-nada que promove este efeito. Assim são seus Objetos Relacionais, sua última obra.

Produzir este efeito, é, ao meu ver, a marca mais significativa na obra de Lygia e não apenas em suas criações pós-Bichos. Só tem sentido evocar Lygia se for para reativar esta sua marca, reatualizar sua potência de abertura para o estado de arte na subjetividade contaminando a cultura contemporânea: uma prospectiva desencadeada por esta marca e não uma retrospectiva de suas formalizações.
Este é o desafio que se coloca, a meu ver, para qualquer tentativa de expor a arte de Lygia Clark –sobretudo quando se pretende incluir seus objetos pós-virada de 64 ousando enfrentar seu mistério, indispensável para a inteligibilidade da obra. Como reativar hoje e num ambiente de museu ou galeria sua força de proliferação? Como fazer emergir em cada "visitante" a voz disruptora do bicho que Lygia nos legou? O desafio por enquanto permanece em aberto...

(1) Sessão do trabalho sobre Lygia Clark que venho desenvolvendo com um grupo de acompanhantes terapêuticos 

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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/12/04/mais!/30.html

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