quinta-feira, 14 de junho de 2018

Diálogos entre Filosofia e Arte: O amor em ritornelo

Yoann Bourgeois, o homem sem gravidade

ritornelo
substantivo masculino
  1. 1.
    hist.mús refrão, frase repetida em cantos ou versos, como nos madrigais italianos dos sXIV e XV.
  2. 2.
    hist.mús nos concertos clássicos, retorno da orquestra completa, depois do trecho de solista ou da parte de um concertino.


"(...)

Ritornelo
Dentre os conceitos que nascem deste encontro, o ritornelo talvez seja um dos mais expressivos. Dizemos isto porque, ao descrever o movimento do ritornelo, no capítulo 11 de Mil platôs “Acerca do ritornelo” (volume 4 da tradução brasileira), Deleuze e Guattari elaboram plasticamente o movimento mesmo da repetição da diferença.
Para fazer nascer este conceito, eles buscam na música sua principal imagem. Uma criança que canta para afugentar o escuro, alguém que canta enquanto arruma a casa, alguém que canta criando seu lugar, ou alguém que canta um canto de partida “adeus amor, vou partir”. De um primeiro giro se faz um centro, um eixo de sobrevida, mas um segundo giro se faz necessário e o eixo se amplia pela extensão que lhe envolve. Mas como tudo aquilo que abriga também obriga, os filósofos imaginam sua ciranda indo além desta simples fundamentação de um lugar, para enfim desfazer-se no seu afundamento: forças diversas invadem o pequeno terreno e atraem para fora o seu principal personagem que, estando fora, mergulha em um novo ciclo ou mergulha no sem ciclo.
É assim que o ritornelo consiste em três aspectos inseparáveis: 1. escolher um eixo; 2. desenhar um domínio – território – em torno deste eixo; 3. traçar a partir deste domínio, ou território, linhas de fuga que levem a outro ritornelo (no qual novamente será desenhado um território em torno de um eixo, do qual serão traçadas linhas de fuga etc…). Não seriam três etapas, mas três aspectos que devemos conceber como simultâneos no ritornelo. Sendo o terceiro aspecto este vetor de desterritorialização, em que o território se precipita em sua própria dissolução.
Mas esta pequena ciranda não se dá sem que eles conversem incessantemente com a música e outras artes. É então que entram em cena os compositores Luciano Berio, Alban Berg, John Cage, Robert Schumann, Modest Mussorgsky, -Edgard Varèse e Olivier Messiaen. Com exceção de Schumann, todos compositores que viveram o desfazimento da música romântica do século 19. De cada um dos compositores eles trazem uma idéia. Mas não se trata de extrair destes exemplos ilustrativos. A música também tem seus conceitos e são os conceitos e estratégias de composição que Deleuze e Guattari põem lado a lado com os conceitos da Filosofia para daí fazer eclodir movimentos quase que inusitados.
Os interlocutores dessa conversa vão além da música e eles chamam Paul Cézanne, Vincent Van Gogh, Paul Klee, Francis Bacon, Samuel Beckett, Antonin Artaud. E o ciclo do ritornelo, que poderia ser fechado, abre-se frente a estes que escancararam as portas da arte no século 20, que a retiraram de seu eixo seguro para fazê-la conectar-se novamente com as forças não formadas do caos. E é aqui que advém um dos motivos circulares de Deleuze, aquele que ele rouba sutilmente de Paul Klee: “A Arte não imita o visível; ela torna visível o não-visível.” A Arte sai dos limites fáceis do que é sensível, do que tem nome e forma, para buscar no caos, em que a forma é sempre apenas provisória, pontos soltos, linhas soltas e então dar-lhes corpo. Dar corpo tátil ao som, dar corpo sonoro ao tempo, dar visibilidade ao que é tátil, dar sonoridade ao que era apenas volume em uma pedra. Este cruzamento, que o filósofo português José Gil bem localizou no pensamento de Fernando Pessoa, sobretudo em seu Alberto Caeiro e na sua teoria do sensacionismo: fazer ver o cheiro da chuva oblíqua.
E talvez o próprio Deleuze, com Guattari, tenha encontrado uma imagem, a partir de D.H.Lawrence, que resumiria seu pensamento. Lemos em O que é a Filosofia?: “Os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas conversações, suas opiniões; mas o poeta, o artista, abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar, em uma luz brusca, uma visão que aparece atrás da fenda, primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação.”
E é assim que a Filosofia, como lugar de criar conceitos, se força a cruzar com outros personagens, aqueles da Arte a quem Deleuze e Guattari chamam de “seres de sensação”, que acabam tornando sonoros, visuais, táteis, cheios de movimento os conceitos filosóficos. E arrastam a Filosofia para onde ela não só é forçada a pensar como ainda dançar e cantar. Tendo feito o seu ritornelo, imaginado uma primeira canção, um primeiro conceito, imaginado todos seus amigos e debatedores, o filósofo segue a viagem solitária, viagem longa, no entanto, viagem no mesmo lugar: a linha de fuga que a Filosofia encontra na Arte. Esta, um dos ritornelos de Deleuze, que o leva para longe da opinião, para longe da comunicação: “Nenhuma relação entre a obra de arte e a comunicação.” A Arte, aquele ponto no futuro no qual a Filosofia busca suas novas linhas de conexão.
Silvio Ferrazé compositor, professor no Depto. de Música da Unicamp e autor de Música e repetição(Educ, 1998) e Livro das sonoridades (Ed.7Letras, 2005)
Annita Costa Malufeé poeta, doutoranda no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autora de Fundos para dias de chuva, poemas (Ed.7Letras, 2004) e Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (Annablume, 2006)

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